RIO – O novo filme de Walter Salles, “Na estrada” (“On the road”), será apresentado em competição no Festival de Cannes, a partir de 16 de maio. São muitas as razões da expectativa. A principal é a demora para que o clássico da literatura beat, publicado por Jack Kerouac em 1957, chegasse aos cinemas. Só a produtora americana Zoetrope, que financiou o filme ao lado da francesa MK2, tenta viabilizar o projeto desde 1980.
Salles juntou-se a esse desafio há oito anos. O diretor rodou os EUA, refazendo a viagem dos personagens Sal Paradise (alter ego do próprio Kerouac, no filme interpretado por Sam Riley) e Dean Moriarty (alter ego de Neal Cassady, vivido por Garret Hedlund), e entrevistou sobreviventes e admiradores do livro — o material dará origem a um documentário.
Em 2008, o último filme de Salles, “Linha de passe”, deu a Sandra Corveloni o prêmio de melhor atriz em Cannes. Aquele foi o último ano em que um cineasta brasileiro participou da disputa pela Palma de Ouro.
É seu retorno a Cannes depois do sucesso de “Linha de passe”, em 2008. Ao mesmo tempo, é o retorno de um cineasta brasileiro à competição principal do festival, também depois de 2008. Como se sente?
WALTER SALLES: Um festival como Cannes é aquele lugar em que o cinema ainda é um instrumento de conhecimento do mundo, e onde um filme começa a voar pelas próprias asas. É um ponto de encontro de cinematografias do mundo inteiro, antes de ser uma competição. Vamos felizes por termos sidos selecionados e, como “Diários de motocicleta” nos ensinou, sabendo que o fato de um filme ser bem recebido não significa que ele vá ser premiado. A seleção já é, em si, o prêmio.
O que “Na estrada” representa para sua carreira?
“On the road” é um amor de juventude. Eu tinha 18 anos e me apaixonei pela liberdade radical dos personagens de Kerouac, pela narrativa ritmada pelo jazz, pela forma como o sexo e as drogas são tratados à flor da pele, pela estrada como busca não só do outro, mas de si mesmo. O livro era diferente de tudo o que vivíamos no Brasil dos anos 1970 e do mundo em que eu vivia. Houve um antes e depois dessa experiência. O filme é o resultado de uma obsessão que começou nessa época.
O quanto a experiência com “Diários de motocicleta”— também um road movie com jovens — ajudou na realização de “Na estada”? O quanto esses dois filmes são próximos para você?
O ponto em comum está no fato de que são dois filmes sobre a inquietação da juventude. A idade dos personagens dos dois filmes é parecida. Mas, enquanto os dois jovens de “Diários” são modificados pelo continente latino-americano e pelas pessoas que eles encontram no caminho, a viagem de “On the road” é para dentro, de autoconhecimento. A viagem iniciática de “Diários” vai desaguar numa revolução social e política, enquanto a de “On the road” vai acabar criando uma revolução comportamental. Nesse sentido, os dois filmes são complementares.
O que tem ocorrido com os filmes brasileiros nos festivais internacionais? Por que Cannes, Berlim e Veneza, os três principais, não têm selecionado produções daqui para suas competições?
Porque o modelo brasileiro de financiamento está principalmente endereçado ao mercado. É o contrário de Argentina, México e agora Chile, que criaram mecanismos para alimentar cinematografias nacionais mais amplas, e por isso são constantemente visitados pelos principais selecionadores de festivais. O que não falta no Brasil é talento. Falta afinar o modelo. Ao mesmo tempo, é importante mencionar que estamos fazendo um dos melhores cinemas documentais do mundo. De Eduardo Coutinho a Flávia Castro, a safra dos últimos anos é de altíssima qualidade.
Já o questionaram pelo fato de um dos mais importantes livros do EUA ir parar no cinema pelo olhar de um brasileiro? Você acha que essa distância da realidade do livro é importante para interpretar a história?
Diferentes projetos de adaptação de “On the road” existem desde 1957. Não houve, sintomaticamente, quem financiasse esse filme nos Estados Unidos em 50 anos. Quando fui consultado pela Zoetrope (produtora californiana cujo proprietário é Francis Ford Coppola) depois da estreia de “Diários” no Festival de Sundance, em 2004, fiquei em dúvida se deveria aceitar. Daí a ideia de fazer um documentário sobre “On the road” e o legado de Kerouac, que venho filmando desde 2005. Um dos entrevistados, o poeta e ativista negro Amiri Baraka, nos disse que “On the road” era essencialmente uma história de filhos de imigrantes que não encontraram lugar nos EUA conservador do pós-guerra e entraram em colisão com esse país, ampliando as fronteiras comportamentais aceitas até então. Kerouac era filho de imigrantes canadenses; Ginsberg, de imigrantes judeus do Leste Europeu; Neal Cassady, neto de imigrantes irlandeses e alemães. Eram jovens que estavam entre culturas. O roteirista José Rivera, o mesmo de “Diários”, também é filho de imigrantes. A nossa equipe era composta, como em “Diários”, por gente que vinha de culturas diferentes, canadenses, franceses, latino-americanos, norte-americanos. O que nos unia era a paixão pelo livro de Kerouac.
´Em “Na estrada”, você teve à sua disposição um elenco de jovens estrelas americanas, algumas, como Kristen Stewart, com uma base de fãs gigantesca. Certamente isso vai expandir o público do filme. Como você acha que a história será recebida pelos jovens de hoje?
“On the road” fala dos desejos de juventude, da necessidade de se experimentar as coisas na pele e não por procuração, da importância de se viver cada instante como se fosse o último, do primado da intuição sobre a razão. O livro propõe uma espécie de ressensibilização dos corpos e das mentes. Será que isso toca as pessoas hoje? Espero que sim. Ao mesmo tempo, é bom lembrar que o público que os atores atraem para certos filmes não se transfere necessariamente para outros.
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